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30 novembro 2014

Acordei pensando...
Noves fora o filtro por onde enxergava a vida, a conta agora fecha. Isso mesmo: a conta está encerrada. Não ter moedas de troco talvez seja lucro - não devo tostão a ninguém. O que me devem, o tempo cobra, mas que a paga vá parar em outras mãos. Nadie puede escapar a la rendición de cuentas. Na vida, a dobra do tempo indica o novo ponto de partida. 

Sim, viver é uma sequência de possibilidades de começo, à disposição de uso quantas vezes vezes forem necessárias, até encontramos as coordenadas exatas -  como as ondas do mar. Parece papo de navegador... e é. Navegar é a metáfora predileta dos poetas para o exercício da vida: "navegar é preciso", diz Fernando Pessoa, "viver não é preciso". Vida é também um processo de reinterpretação, releituras. E aí está o nó de marinheiro: o problema básico do "re" é a incidência e insistência sobre o mesmo; sobre as bases por onde muitas vezes deixamos escorregar as infinitas possibilidades - dentre elas, às vezes, as nossas melhores chances, ou não! 

 A frase a que Fernando Pessoa emprestou fama foi originalmente dita por um general romano, 70 anos antes de Cristo.  Pompeu precisava enfrentar os riscos de singrar os mares, vencer piratas, rebeliões e guerras para cumprir o destino de Roma - tornar-se uma das mais importantes potências da Antiguidade, um império de dimensões gigantescas. Navegar, então, tinha prioridade sobre a vida. Mais do que levar o trigo para saciar a fome do povo romano, navegar se sobrepunha à vida para garantir o fluxo da história. Os escravos famintos e as ameaças de rebelião foram apenas uma... digamos... forma de organizar as prioridades daquele momento - navigare necesse; vivere non est necesse

Sem prioridades, as possibilidades tornam-se difusas e a vida navega sem bússola em alto mar. Nos versos de Pessoa, a localização do mar no íntimo do ser; no orgulho de ser; na ânsia de posteridade em favor de uma "humanidade" difusa - o sonho de um tripulante da nau de Pompeu, convencido de que a grandeza do sacrifício  garantiria a imortalidade na História. É... não deixa de ser uma priorização, não dos fatos, mas do desejo pessoal de imortalidade. Talvez a "pátria" dos grandes navegadores onde o poeta nasceu jamais tenha aspirado a ser uma grande nação no sentido do poder e da hegemonia entre os povos. Talvez tenha querido ser uma grande nação entre os homens. Vai saber...

Mas isso não vem ao caso, porque a viagem de que falamos é mesmo aquela de toda pessoa, assim como a de Pessoa. Então, voltando ao ponto:  navegar não é necessário; é compulsório - não é a viagem que traz a bússola, mas o ser que em geral adere à opção mais comum de se deixar guiar pelas estrelas... quando estrelas há. Não há certezas na vida e nem "precisão"! Se assim fosse, onde a soberania da vontade? O que há é a liberdade de se construir as caravelas, os mares - revoltos ou não! - e até mesmo a bússola que nos vai guiar. E o general? E o general que dá o comando para lançar as velas ao mar, ditando o rumo da história que ainda não viu, para completar o destino que jamais saberá? É disso que estamos falando: não precisamos de general, porque cada um é a história completa em si mesmo.

Viver é um ato de coragem e requer decisão para atravessar os territórios conhecidos e confortáveis onde a fome, as rebeliões e as guerras pessoais ameaçam destruir a grandeza natural do ser. Navegar é preciso, é exato, é necessário, é desejável; talvez por isso seja compulsório, o que nos faz pensar que há um "general" no comando, incitando-nos ao mar de nossas próprias possibilidades, nem que seja só para escapar da fome, das guerras e rebeliões - mas isso é de uma outra natureza. Onde então nossa coragem?! Navegar só é preciso, porque viver não é preciso, exato! Mas como queria Pessoa, o importante é criar, ao que esta Hanna atrevida acrescentaria: criar a vida que pretendemos, com a precisão dos mestres dos mares. Aí sim, poderemos falar de viver.

Amor de sempre, 
mesmo quando navegando por mares distantes, 
guiada (também) por estrelas.
H.




A letra de Os Argonautas é de Caetano Veloso. Neste vídeo, Caetano lê a carta de Caminha, descrevendo como via a nova terra, hoje Brasil. Abaixo, as letras das duas poesias. Só pra não faltar com a informação...rs.

Navegar é preciso
(Fernando Pessoa -1888/1935)

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso."
Quero para mim o espírito desta frase, transformada 
A forma para a casar com o que eu sou: 
Viver não é necessário; o que é necessário é criar. 
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. 
Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo. 
Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. 
Cada vez mais assim penso. 
Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade. 
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa raça.


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Os argonautas(Caetano Veloso - 1942/ainda navegando)
O Barco!
Meu coração não aguenta
Tanta tormenta, alegria
Meu coração não contenta
O dia, o marco, meu coração
O porto, não!...
Navegar é preciso
Viver não é preciso...(2x)
O Barco!
Noite no teu, tão bonito
Sorriso solto perdido
Horizonte, madrugada
O riso, o arco da madrugada
O porto, nada!...
Navegar é preciso
Viver não é preciso (2x)
O Barco!
O automóvel brilhante
O trilho solto, o barulho
Do meu dente em tua veia
O sangue, o charco, barulho lento
O porto, silêncio!...
Navegar é preciso
Viver não é preciso...

Um comentário:

Hanna disse...

Coração navegante de Hanna se sente também acariciado com suas palavras doces; com esse "te adoro"... Um carinho às vezes faz tão bem...rs.
Te adoro também!