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12 março 2011

Historinhas de Hanna


Não tinha motivos para chorar. Não que os fatos da vida tivessem se acomodado dentro da caixa mágica da vontade controladora que, ao longo do tempo, vamos aos poucos construindo. Não, a caixa mágica fora despejada vida a fora junto com papéis velhos, lembranças inúteis e fotos quase apagadas de uma memória também controlada. Há quem diga que ser feliz é apenas uma questão de déficit de memória. Não era o caso. A vida poderia ser recontada em seus mínimos detalhes, mas os resíduos dos fatos vividos é que guardavam os sentimentos pesados e rotos, como todo passado acaba por ser. Não havia mais motivo para chorar, depois que recolheram o imenso saco de plástico preto, cheio até a boca, que mal conseguia se fechar. Era como uma espécie de cadáver embalsamado, agora despedaçado em mil fragmentos, que em si também guardavam a história toda. Podiam todos recontá-la como macabros espelhos. Há muito tempo não tinha motivos para chorar - aprendera a relativizar os acontecimentos. E assim foi que começou a preparar o jantar, separando os ingredientes como quem já estaria pondo a mesa. Começou pelas cebolas, recém chegadas à dieta e que aromatizavam todos os pratos. De repente, as lágrimas começaram a descer copiosamente. Mas o que estaria havendo com aquelas cebolas? Não se faziam mais cebolas como as que antigamente ardiam os olhos. Não lembrava de ter "chorado" cebolas desde que começou a usá-las. Percebeu então que também havia muito não tinha motivos para chorar. Eram as cebolas... Mas as lágrimas quentes vertendo sobre o rosto geraram um certo conforto, ou vontade de se confortar por um luto talvez ainda não tão completamente vivido. Lembrou do saco de plástico preto carregando o corpo simbólico de tantas coisas mortas. Empenhou-se em picar as cebolas, até que as lágrimas já impediam a visão. A faca afiada, que não entende mais do que seu ofício, passou-lhe sobre a unha do polegar, quase atingindo a carne. Foi o bastante para que acordasse daquele réquiem inútil - soltou a faca e, para conseguir ver a gravidade da coisa real, levou o dorso da mão aos olhos para enxugar as lágrimas que, neste instante, estavam prestes a encontrar um motivo que as justificassem. O instinto de sobrevivência não mede dores para garantir a existência - instintivamente, limpou os olhos com a mão salpicada de lágrimas de cebola. Ao correr para a pia para resolver o emaranhamento dos fatos, se dera conta de que não tinha mesmo qualquer motivo para chorar e pensou: mas que diabos fizeram com as outras cebolas que já não ardem mais os olhos? Será que foram geneticamente modificadas? E estas? Por que... Interrompeu o pensamento. Não quis saber. Lembrou do conselho antigo que ainda pequena ouvira da avó: "mastigue um palito de fósforo enquanto corta a cebola e você nunca mais vai chorar..."
FIM

A todos, amor acebolado de Hanna.

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