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07 fevereiro 2010

Episódio final da história da cigana - encontro com personagens

Os dias transcorriam como deveriam ser — felizes e calmos. Há muito não tinha dias tão habitados por tantas pessoas amáveis e queridas durante o tempo todo. Talvez por isso tenha deixado de lado o papel dobrado que a cigana me dera, havia quase uma semana. Resistia a saber que poderia estar ali o legítimo fim da história que já havia acabado tantas vezes. Às vezes esquecia completamente o episódio, aquela história, suas personagens inventadas. Contava as vezes em que me lembrava, apenas para certificar-me de que aos poucos estava esquecendo. Mas o fato é que lembrava. Estava um dia agradável, quando resolvi romper o lacre da ilusão que inventou todo o enredo de uma história banal, sem talento — non sense que ganhou autonomia e seguiu em frente, à revelia do próprio autor. A decisão de desfazer aquela intrigante dobradura surgiu repentinamente, agarrada à vontade inegável de que a história não tivesse terminado da forma real como terminou. Olhava uma revista de turismo, enquanto pensava. Apenas olhava, sem me deter nas informações, quando encontrei a forma simbólica de pôr um ponto final naquela história sem fim. Jorge Luis Borges. O escritor argentino costumava frequentar um botequim restaurante chamado El Preferido, autêntico bodegón espanhol, em Palermo Soho. Lugar ideal para enterrar os restos imortais de um história. Já não faziam mais diferença, mas também não paravam de transitar os personagens inquietos e decididos a não interromper uma trajetória sem saída. O restaurante tem duas entradas— uma pela Guatemala, 4801, e outra pela Jorge Luis Borges, 2108. Uma construção antiga, de 1885, que em 1952 virou armazém e depósito de bebidas. A casa de Borges ficava em frente àquela casa rosada, embricada entre as duas ruas. Entrando pela Guatemala, era como se estivéssemos em um armazém de secos e molhados. Pela rua que homenageava o frequentador ilustre, chegávamos ao bodegón, com mesas altas e banquetas que certamente não deixam os fregueses ficar para além do almoço. Uma ceveza e no más! parecia que diziam os bancos altos. Nem mais uma cerveja. Não conseguia imaginar Borges naqueles bancos por mais de uma cerveza.
Borges sentaba en una silla de ali— explicou rindo o garçon, diante da minha constatação. Tentei olhar a cadeira que ele apontava, mas o bancão não me permitia alcançar o lugar nem com o olhar.Distraía-me com aquele passado alheio; com aqueles vidros imensos de conservas coloridas e com a demora do garçom em resolver trazer uma cerveja Quilmes, aquela da garrafa imensa que se via gente bebendo no gargalo nas ruas perto da feira de Santelmo.
Aqui está. Tiene un buen apetito — serviu o sonolento garçon que logo desapareceu. 
Já quase me esquecia do que fora fazer ali, quando uma mulher se espantou com um gato que dormia em uma espécie de janela de sótão, redonda, que ficava a um palmo do chão e deixava entrar a luz forte do dia quente e do vento que trazia folhas para dentro das frestas. O garçon surgiu lentamente e arrastou o gato para debaixo do braço. O bicho nem reagiu, mas voltou para a clarabóia assim que o garçom o pôs no chão. A mulher nem viu e continuou seu almoço em paz. Finalmente o bancão começava a me expulsar do lugar. Era o tempo exato de um almoço e uma cerveja. Paguei a conta, olhei as curiosidades do lugar, que não eram muitas, e saí. Andei por muitas ruas, lembrando e esquecendo do papel que guardava no bolso da saia de linho colorida. A mesma saia que usava quando atravessei o rio Guamá para ver a floresta. A mesma saia que usava quando comecei esta história. As árvores eram linda e exuberantes, apesar do calor e do vento quente. Aproveitei a sombra de uma delas e me dispus a ler o que havia naquele papel que um escriba imaginário inventou. Meu coração disparou numa estranha ansiedade; esperança sabe-se lá de quê.
Toda vez que Deus se referia à casa, como por exemplo "a casa de Israel", "a casa de Davi" ou "arruma a tua casa", e várias outras passagens bíblicas, estava se referindo à casa espiritual. No meu humilde entender, a casa simboliza você mesma. E o fato de ser linda, talvez esteja relacionado às suas intenções, ao seu coração, mas a dúvida de ser sua casa ou não, penso que você precisa prestar mais atenção a você mesma, ao seu coração, em vez de mostrá-lo a pessoas que você nem conhece. As casas vazias pelo caminho são as pessoas que aparentemente estão bem à sua volta, sorrindo, brincando, mas na realidade estão com um imenso vazio dentro de si. Mas as janelas estavam abertas. Elas estão receptivas. A Bíblia diz: "...de tudo guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida eterna. Continue andando... vamos ver os acontecimentos...”
Pensei em amassar o papel e deixá-lo cair das mãos, mas não consegui.Tentei dobrá-lo da forma original, mas não consegui. O vento veio e se encarregou de fazer o que eu não quis. Soprou para longe o papel e eu senti um alívio esotérico, quase uma alegria. Teria sido uma comunicação da inteligência do Grande Universo? Melhor pensar que sim. Ajeitei a bolsa e me preparei para atravessar a rua, quando outra rajada de vento ameaçou levantar-me a saia. Baixei as mãos em gesto automático e um papel me veio bater ao peito. Qual não foi o susto quando vi que era o mesmo papel. E o vento estranhamente parou... ou eu não me dei conta de que ele já havia soprado o quanto lhe bastasse. Li novamente, tentando decifrar um possível código, uma mensagem, sei lá.
Una moneda, señora; una limosna, por favor — a mão suja e enrugada do homem que pedia esmolas surgiu sob meus olhos, que estavam abaixados e fixos no papel em uma de minhas mãos. Levantei a cabeça e o homem repetiu com um sorriso ameno, como se me reconhecesse:
Una limosna... cosa qualquer — olhei o papel na minha mão e para a mão dele, ainda estendida na minha direção. Entreguei o papel, que ele recebeu e guardou, como se dinheiro fosse.
Gracias, querida... sigue tu camino — e se foi. Fiquei ainda por alguns instantes tentando decifrar o que agora pressentia como uma mensagem... ou apenas a lembrança de uma mensagem.
"Continue andando... vamos ver os acontecimentos", a frase ecoou como um sussurro em meu pensamento. Atravessei a rua e fui embora a pé pela Jorge Luis Borges, pensando em como contar uma história que não quer ter fim. 

FIM


 
...ou não...
Hanna

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