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13 janeiro 2010

Encontro com personagens das histórias — Angústias do céu sobre o que é amar

A CIGANA


 Avenida Santa Fé
Acordei cedo naquele primeiro dia de viagem de férias com toda a família e saí sozinha para caminhar pelas ruas e poder dizer para mim mesma, como quem se belisca: estou em viagem de férias, coisa rara na minha vida de tantas viagens; e com as pessoas que mais amo e  me fazem tão feliz. O tempo estava claro e um calor ameno abraçava meu corpo, deixando sentir na pele que eu estava realmente em outro lugar. Cada lugar tem seu tempo. Os pensamentos iam e vinham, mesclando-se entre observações mais sutis e a clássica visão de quem é de outro lugar: as diferenças.  Seguia pela Avenida Raúl  Scalabrini Ortiz para pegar a Avenida Santa Fé e chegar ao Jardim Botânico. Poderia ter feito um percurso mais curto, porque da portaria do prédio onde estávamos, quase esquina de Juncal,  podia-se ver a grade verde logo ali no fim da quadra. Mas acho que tenho  uma certa mania de me perder. Quando não conseguia encontrar o lugar, costumava dizer a meus filhos ainda pequenos, para tranquilizá-los, que não estávamos perdidos, mas apenas descobrindo novos caminhos. Acho que eles nunca foram nesta conversa, mas acho que eu acabei acreditando nisto.
E não deu outra: as casas antigas e os prédios de arquitetura tão diferentes me distrairam e me conduziram por outras possibilidades, novos caminhos — que novidade! Havia me perdido.
¿Sir, como hago para llegar el jardín botánico?
¿Cómo? ¿Dónde usted desea ir?
O senhor de boina, barriga generosa e cabelos prateados não entendeu o que eu disse e desandou a falar o que eu também não conseguia entender. Me espantei com a perda de validade da minha capacidade de me virar em espanhol. O jeito era admitir isso e tentar com gestos, mímica, talvez; ou encontrar quem falasse... humm... inglês. Desconfiei que talvez meu inglês também já tivesse ido para o espaço junto com o espanhol. Tentei de novo, forçando no sotaque que ainda me restava na memória. Na verdada, imitei o jeito do homem falar:
Por favor, habla a devagar. No entiendo lo que le está diciendo. — insisti, como se o espanhol macarrônico fosse o dele. E ele repetiu devagar, reforçando com as mãos: "onde-desejas-ir?". E eu repeti pausadamente: "Jardim Botânico".
Ah, sí! El Botánico! Sí, como no...
Aí então percebi que o problema não era exatamente o idioma, mas a maneira como cada um nos referíamos à mesma coisa. Jadim Botânico, para eles, é apenas Botânico. Fiquei pensando se não haveria mesmo uma certa redundância em Jardim Botânico. Será que existe um jardim que não seja... botânico? O de infância é outra coisa. Tive vontade de pedir desculpas pela nossa arrogância quando se trata de argentinos. É verdade que no futebol os caras se acham, mas convenhamos, o Maradona é uma figuraça.
Sí, esto! Botánico — disse eu balançando a cabeça,  para não me perder também nos pensamentos. E o homem desandou a falar e a gesticular. Fiquei atenta, porque ele certamente haveria de indicar, com a mão, uma direção. Eu não conseguia entender o que ele dizia, porque falava como se fosse um narrador de corridas de cavalo. Até que a palavra-chave veio acompanhada do tal gesto universal: alí! A distração que me fez perder o rumo se deu bem ali, onde eu deveria virar para a esquerda, quando cheguei na Santa Fé e me encantei com as fachadas antigas — a direita nunca foi uma boa opção! E o homem apenas me virou para o lado certo. Um a zero para os portenhos! A cerca verde estava mais distante, mas era logo ali. Agradeci e segui contente, com aquela primeira descoberta... botánico...  Fui em frente pela Araós, quando o homem havia indicado Santa Fé, à esquerda. E ele disparou a gesticular e a me chamar para me por de volta nos trilhos.
Tranquilo! Ahora sé donde está e sé cuál es el problema:  no es jardín, pero Botánico! Gracias!

Aí quem não entendeu foi ele. Segui pela Araós e três quadras à esquerda depois eu estava diante do... Botânico. E foi aí que começou a história que depois vou contar. Antes de entrar no...Botânico, quando seguia pela calçada ao lado da cerca, vi uma mulher que me pareceu conhecida, do outro lado da rua. Ela andava graciosamente sem pressa, embora parecesse estar a caminho do trabalho, pela maneira elegante como estava vestida e pela pasta que carregava no braço, junto com a bolsa. A curiosidade estava prestes a interromper novamente minha decisão de dar uma corridinha e me alongar no... Botânico. Atravessei a rua e fiquei sem jeito de abordar a mulher, que poderia ser apenas parecida com alguém que eu conhecia. No fundo, o que me constrangia era a elegância dela. Mas a curiosidade é fogo. Fiquei por algum tempo andando atrás da criatura, até que me dei conta de que seria muito mais constrangedor ser tomada por uma brasileira perseguidora, terrorista, sequestradora, sei lá. Resolvi que a chamaria como que quer apenas uma informação. E qual não foi minha surpresa quando a chamei e ela se virou. Era, pasmem, a cigana de quem já lhes contei uma longa história. Quase não acreditei. Ela não se surpreendeu; parecia que aquele encontro havia sido marcado. Sentamo-nos em um simpático café na esquina de Antônio Beruti com Avenida República Árabe Síria, o La Esquina, perto já da entrada do Botânico, do lado oposto da rua.

Pedimos um café simples, que veio acompanhado de um copinho de suco de laranja e outro de água. Naturalmente, estranhei os acompanhamentos. E a... cigana, me explicou que isso era comum nos cafés de Palermo. Eu ainda estava sob o impacto da surpresa do encontro, mas ansiosa por fazer perguntas e saber o que havia acontecido com todas aquelas personagens que me deixaram ver suas vidas e narrá-las a meu modo. Mas este é um assunto para uma próxima postagem. Ainda estou arrumando os dados da conversa. Afinal, mal acabei de desarrumar as malas. Aguardem.
Espero que se interessem por mais esta história de Hanna, que será ilustrada com fotos reais.
Calma! Fotos reais dos lugares referidos na história. Não costumo invadir a privacidade das personagens. E a quem interessar possa, as histórias originais estão no arquivo do Sobretudo.
 Beijos e acordem bem, porque o dia é um brinde a cada dia.
Amor.
Hanna portenha

Palermo


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