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19 abril 2009

Querida meia dúzia de três ou quatro leitores, acostumados à idéia de que qualquer coisa vale a pena se a paciência não é pequena: tenho algo a oferecer. Principalmente àqueles que reclamam a volta às bobagens quando me meto a dialogar com jornalismos. Pois bem, agora é bobagem com categoria - categoria de novela, conto longo, romance, ficção. Se em nada disso o esforço se encaixar, podem colocar na conta da mentira mal contada, que disso não me importo. Vocês sabem que considero que o mais importante é contar, keep in touch. Então o destino me fez encontrar com o fio da história que lhes vou contar. Sim, a história tem fonte original e verdadeira, embora os fatos sejam completamente inventados. Qualquer semelhança com a realidade de quem quer que seja é tudo, menos má intenção, intriga, maledicência, porque vocês que me conhecem sabem que não sou dada a torpezas de espírito. Ponham também na conta dos delizes de texto. Nossa... como estou distribuindo a conta! Puro medo do fracasso! Mas como ia eu dizendo, trata-se de uma história dividida em uns tantos episódios, que vou postando a cada domingo. Já sei o que vão perguntar os amados bisbilhoteiros de plantão de final de semana: mas quem é a fonte? Antecipo-me a esclarecer: alguém que existe e que acabou de me autorizar o desague, o transbordo, a exurrada de ser ver pelos olhos alheios. Alguém que passo agora a amar, para poder contar com generosidade a sua vida que vou inventar. Amor intenso e profundo, quase eterno, como se jamais tivesse amado em todas as tolas histórias da vida. Não há laços, compromisso algum, e o amor é pura retórica. Aliás, estamos inaugurando a liberdade, a qual nenhum de nós efetivamente está acostumado. Chances de desastres é a possibilidade do efeito colateral da vontade de escrever uma boa história. Portanto, tudo certo. O resto são fantasias de quem veio ao mundo apenas para amar.... ou para fantasiar e escrever histórias, tanto faz.

Episódio UM

A notícia não era nova, mas parecia cair como uma bomba, todos os dias, na mesa de trabalho daquele homem sóbrio, sério e tão ciente das suas medidas. O mais sólido dos mundos parecia desmanchar-se no ar. Naquela tarde, ele registrou entre milhares de números o de um amigo que o trouxera para aquele lugar. Consolava-o saber que o amigo conseguira uma razoável estabilidade financeira e que a compulsória demissão voluntária não seria assim tão desastrosa.
Aquele lugar lhe fora ofertado de mãos quase beijadas, quando decidiu abdicar do sonho juvenil de ser um atleta profissional bem no momento em que o sonho já se tornava quase real. O Sol brilhava na sua vida, mas não considerava que um sonho pudesse realizar a noção plena do que entendia como realização profissional. O que era, na prática, a realização profissional ele ainda sequer podia imaginar.
Mas o que são os sonhos? De que são feitos? Para que servem? Onde me levarão? Eram questões demais para quem necessitava apenas de respostas. Naquele momento, apenas respostas. Mas de uma coisa, embora não tivesse certeza, certamente tinha medo: não poderia bancar seus próprios desejos, não daquela maneira como se apresentavam, assim tão exclusivamente seus. Era preciso, de alguma forma, devolver ao pai a felicidade que ele perdera em algum canto da vida. Dignidade e estudo - eram essas as palavras que indicavam a trilha por onde deveria seguir. E isso não tinha nada a ver com a fama e o reconhecimento público que tantas vezes imaginou ao receber alguns trocados por vencer umas partidas de futebol em pequenos clubes da cidade. O espaço do sonho era largo – fama, reconhecimento, aplausos, ser a referência. Mas ainda eram muito vivas as impressões de uma vida que lhe deixou sempre em falta. Carregava como fardo leve a imagem do pai que tanto amava. Era preciso compensá-lo da dor que era só dele, com o que pudesse oferecer em sacrifício do que fosse só seu.
Nunca se dera conta de que abdicara de algo importante ou que fosse realmente seu. Nunca se dera conta de que trocava a essência de seu ser pela fantasmagoria de apenas uma imagem ideal. Não tinha muito a oferecer, além do sonho juvenil. Depositou o sacrifício no altar da ingenuidade e tomou para si, em troca, o orgulho. Em lugar do reconhecimento, o orgulho que ele sorveu de apenas um gole, quando entrou para aquela empresa em posição de funcionário público. Era apenas um menino e já tinha a garantia de emprego, salário digno. Tudo o mais se apagou. Precisava agora estudar para completar a tarefa; e fez isso apenas para portar um título que jamais usaria. Mas cumpriu o que considerava seu dever.
E agora, tarefa quase cumprida, a história reabre e desfaz o que ele fez. A empresa fora privatizada há doze anos, mas ele não considerou que os seus projetos enquadrados estivessem aí envolvidos. Na verdade, acostumara-se à linearidade da realidade acomodada. Aprendera a trocar as emoções pelos deveres e necessidades. A figura paterna ocupava todos os espaços; ao mesmo tempo, urdia todas as contradições. Deixou de lado os sentimentos – era melhor não sentir coisa alguma do que ter um mal sentimento que ferisse a lógica dos amores consagrados. Na verdade, ele não conseguia olhar para dentro de si, confrontar-se com seus sentimentos. Talvez ainda não tivesse a noção de que amar é diferente de sofrer; ou talvez tenha acolhido em si o que considerou ter sido a desdita de seu pai.
Aos trinta anos, deixou que escrevessem com as tais mãos beijadas mais um capítulo de sua história. Mas as compensações lhe pareciam maiores que os sacrifícios desta vez – uma mulher bonita, atraente, corpo perfeito. Mal a conhecia para além dos atributos quando abrigou-a em sua casa depois de um incidente. E lá ela ficou, com seus dois filhos, por 18 anos. Casou-se sem que tivesse planejado. E planejou o resto da vida como se tivesse escolhido ser assim. Construiu uma bela casa, criou os filhos como se fossem seus, criou cães, trabalhou e cumpriu com dignidade e honradez o seu papel. Os sentimentos não pareciam ser necessários, diante de tanta responsabilidade e seriedade.
E agora, aos poucos, ele vai ficando nu, despido das roupas que lhe vestiram. A última e mais importante das peças, chapéu nobre, está prestes a cair. Hora de limpar os armários, ele diz, comprar roupas novas. Vida nova! Quanto de sacrifício ele estará disposto a empenhar desta vez?

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