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24 janeiro 2010

Aquela cigana


Continuação da postagem A Cigana, de 13/01/2010 (arquivo)...


Eu não sabia como chamá-la; aliás, sequer sabia seu nome. Estávamos agora naquela constrangedora situação; constrangedora para mim, certamente; talvez não para ela, que demonstrava uma segurança e tranquilidade que eu desconhecia. Desta vez, nossos olhos estavam no mesmo nível; cara a cara. Ela, elegantemente distraída, como se aquele encontro fosse natural. Eu, vestida para jogging, descompromissada, suada e em viagem de férias. Como poderia encarar uma personagem que saiu sofrida de meu último capítulo, acusando-me de ter-lhe impedido de viver o que acreditava ser o grande amor de sua vida? Eu sentia um misto de pena e de culpa que não pareciam ter para ela a menor importância.  Displicentemente, ela manipulava os saquinhos de adoçante e os copinhos de água e suco de laranja como quem arranja as peças de um inquestionável xeque mate em tabuleiro de xadrez. Foram apenas alguns segundos de silêncio, antes que eu me desse conta de que não sabia o que dizer. Ela interrompeu o desconforto com uma conversa banal de quem, vivendo no lugar, indica a um viajante algum lugar de interesse turístico:
— Você vai gostar de Caminito — afirmou sem ao menos perguntar se eu já havia ido lá — Vai gostar mais do que qualquer um que já tenha ido lá como turista. Você vai se emocionar; vai conseguir ver com os olhos da alma. É um lugar pobre, meio sujo, caro em comparação com os lugares mais sofisticados de Palermo, por exemplo. Mas é impregnado de arte, de poesia, de amor de porto, que leva e traz e leva de novo e instala a dor da espera vã.
Disse a palavra "vã" com um gesto discretamente teatral, complementado pela pequena xícara de café que tocou-lhe os lábios, comandada pela firmeza do gesto das mão de unhas médias, pintadas de esmalte vermelho. Tive a impressão de ter percebido um leve toque de tristeza,q ue se apagou antes que eu pudesse me certificar.
— Deve ser bonito. É difícil chegar lá? Fica muito distante? — perguntei, com alívio, por finalmente termos iniciado uma conversa.
— Caminito é quase um beco; uma rua que foi transformada em rua-museu em 1959. Fica no bairro La Boca da cidade de Buenos Aires. É perto do estádio do Boca Juniors, La Bombonera. — ela disse isso com um leve sorriso, que a xícara de café rapidamente escondeu. Pensei que a referência a futebol fosse a deixa para retomarmos a verdadeira conversa que nos mantinha ali; porque, quanto a nós, nada distinguia o interesse por detalhes desta natureza. Mas ela seguiu com as referências ao lugar.
— Lá você pode ver de obras de arte de grande importância:, a artistas de rua que fazem um trabalho encantador:  O Retorno de pesca, de Benito Quinquela Martín, por exemplo; tecelões como Luis Perlotti, entre outros. Sábados e domingos, das dez da manhã às sete da noite, várias barracas vendem artesanato e souvenirs da região de La Boca. São caros e  excessivamente industrializados.  Mas acho que você vai gostar mesmo é dos casais dançando tango, com roupas caractarísticas, gestos dramáticos, ao som de Francisco Canaro, Carlos de Sarli,  Juan D'Arienzo, Piazzola... e tantos outros que falam de paixão, de amor, de sofrimento e... — neste momento, um pássaro pousou na janela baixa ao lado da mesa onde estávamos e ela interrompeu a dissertação que poderia conduzir a conversa à minha principal curiosidade.
A garçonete, ao ver que admirávamos a tranquilidade do recém chegado, apressou-se a explicar:
Las aves proceden de allí, jardín, el Botánico. Ellos ven a comer migajas de las mesas. Son mui bellas — a simpática interrupção da garçonete nos devolveu ao vácuo de silêncio e me fez perceber que o constrangimento era apenas meu. Ela parecia ter-se deixado envolver pela presença do passarinho, que levou seu olhar a se perder na direção do Botânico. A elegância dela vinha da tranquilidade. Senti um certo alívio da culpa que me foi impingida pelo choro dela, misturado ao riso, no último capítulo. Tudo já deveria ter passado; ou talvez não tivesse mesmo passado de um história.
— Está vivendo aqui há quanto tempo? — perguntei como quem se interpõem na porta antes que se feche.
 — Não muito tempo. Mas o bastante para saber onde ficam todas as coisas aqui. — disse com um sorriso que me dava a certeza de ser mesmo a tal cigana. As perguntas borbulhavam na minha mente; tinha vontade de saber detalhes de tudo o que havia passado desde o fim da história.
— Você... trabalha aqui? — perguntei como quem é empurrada porta a dentro.
— Não exatamente aqui; eu trabalho em muitos lugares; viajo muito. É o meu trabalho: coletar dados da vida em sua performance, digamos...
— Não me diga que é...
— Jornalista? Não, jornalista não — ela disse sorrindo, tornando o caminho mais fácil para a minha incontrolável vontade de esquadrinhar uma provável outra história.
— Sou pesquisadora em Ciências Humanas...— ela disse sem arrogância. Talvez gostasse mais de se dizer cigana.
— Como assim? — não contive o espanto. Afinal, ela era...
— Lembra do jornalista? — perguntou, logo emendando — aliás...escriba.
— Claro! Claro! — como eu poderia esquecer de uma de minhas mais caras personagens. O escriba, que ficava olhando a realidade e a vida dos humanos para relatar aos sábios, que depois deitavam regras sobre como são as coisas da vida. Mas se bem me lembro, ele estava a ponto de se apaixonar por ela, quando foi embora e deixou os sábios com suas "sabedorias". Ela parecia ter ouvido meus pensamentos:
— Ficamos muito amigos. Ele me ensinou tudo o que sabia, em teoria; em troca, ofereci a ele o que eu sabia por experiência de vida, digamos, humana.
— Demasiadamente humana... — completei a frase, provocando o riso que veio espontaneamente, nos fazendo lacrimejar.
— E ele, onde está? — perguntei como quem vai aos poucos invadindo a casa.
— Juntou-se à Associação dos Jornalistas sem Fronteiras e saiu pelo mundo, feito um cigano, contando para todo mundo com a vida realmente é. Jornalista independente. Está feliz assim, eu creio.
— Os sábios... — fui aos poucos me aproximando daquele universo onde a vida pulsava como se pudesse se tornar realidade.
— Os sábios se dispersaram. Sem um escriba, como mediador, nunca mais conseguiram entender nada do que pensavam. Sairam a "deitar regras", como você dizia. Mas como a realidade não se encaixava na teoria, dispersaram. Alguns estão dando aulas; outros, fazendo palestras; alguns escreveram livros e vivem de vendê-los para os alunos dos que dão aulas; outros, nem uma coisa e nem outra, mas se viram como podem, agenciando palestras para os que adoram falar. Apenas um deles permaneceu no Olimpo e continua tentando entender como tudo funciona: aquele que dormia, lembra? Ele fficou lá por uma certa preguiça que lhe era característica, mas também porque toda vez que dorme, sonha que está recebendo um Nobel — ela disse isso sem esboçar qualquer expressão de deboche ou humor. Como se fosse mesmo apenas constatação.
— É para ele que você trabalha? — perguntei, sem conseguir esconder uma certa decepção.
— Não. Eu trabalho para governos, que têm que fazer alguma coisa pelo povo, mas não sabem exatamente o que e nem como. Eu os ajudo a descobrirem "o que", porque a melhor coisa que a sua história me deu foi a vida cigana, de onde tiro toda a experiência que hoje é meu trabalho. Conheço bem esta realidade humana... demasiadamente humana. — ela disse a frase com um certo travo de tristeza, que eu preferi não questionar, e continuou — Estou tentado aprender a outra parte, o "como". Mas como diz meu amigo jornalista, ou escriba, se preferir, uma coisa puxa a outra e quando a gente dá por si, já sabe como fazer. Acredito muito na sabedoria dele, porque é um homem bom.
Não havia muito mais como evitar a pergunta que me torturava. Falei como quem se joga contra uma porta fechada, bem na hora em que alguém resolve abri-la:
— E aquele homem? — perguntei de um fôlego.
— Que homem? — ela perguntou sem demonstrar qualquer perturbação, parecendo sincera.
— Aquele homem, demasiadamente humano...
— Desculpe-me, mas aquele homem não existe.
— Como não?! — reagi com uma ênfase indisfarçável  E ela pausadamente respondeu:
— "Aquele homem", o "demasiadamente humano", não existe. Ele foi uma invenção da sua criatividade.
Não conseguia entender o que ela estava dizendo; onde queria chegar. Ou seria eu que não estava entendendo o enredo da história? Não, impossível! A história, quem inventou....
— Acho que deve estar havendo algum equívoco. Eu conheço a história...
— Claro que conhece; foi inventada por você.
— Mas você esbravejou comigo, obrigando-me a fazer mais um capítulo para dar conta da sua indignação por ter-se apaixonado por ele. Você chorou!
Ela não parecia impactada pelas minhas dúvidas e pela ênfase que eu colocava nas afirmações. Olhou calmamente o discreto relógio de pulso; virou-se para a janela e encerrou a conversa delicadamente:
— Preciso ir; e você vai acabar perdendo sua visita ao Botánico — disse sorrindo gentilmente, enquanto depositava, sobre a mesa, duas notas de cinco pesos e algumas moedas para pagar a conta. O desconforto pela elegância com que ela se portava novamente me constrangeu. Não perguntaria mais nada. No entanto, ela parecia perceber que eu não ficaria bem , se me faltasse uma resposta.
— Quem esbravejou e chorou não fui eu; foi você — e tirou da bolsa um papel dobrado de uma forma interessante, entregando-o a mim.
— Fique com isso. É um bilhete que o escriba me entregou certa vez, logo depois do final da história. Eu li, mas não entendi o que teria a ver comigo. Disse isso a ele, tentando entender o que queria dizer. Ele respondeu que se não servisse para mim, que eu o guardasse. Um dia serviria para alguém. Quem sabe pode servir para você? — disse, apertando o papel na minha mão. Nos despedimos sem muitas palavras.
— A entrada do Botánico é ali. Não deixe de visistar o Jardim Japonês; é lindo. E vá a Caminito. Poderá inspirar-se para novas histórias. Ah, aqui também aprendi a dançar tango; em termos de emoção, é muito parecido com as danças ciganas. Vou indo. Qualquer dia, quem sabe, nos encontramos outra vez. Fique com Deus.
— Vá com Deus... — respondi já sem qualquer intenção de fazer perguntas e obter respostas. Atravessei a rua em ligeira corrida, como quem foge de um pensamento. Não olhei para trás, temendo que a cigana tivesse desaparecido completamente e que nunca houvesse estado realmente ali. Depois me dei conta de que sequer havia perguntado como ela se chamava. Olhei o papel com aquela dobradura especial e tive vontade de não abrir; não naquele momento. Segui pela alameda principal do Botánico, pensando em Caminito e suas poesias da beira do cais.

Continua (e termina) na próxima postagem. Aguardem!


Beijos de Hanna, direto de La boca.











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