Hanna, que a todos ama.
EPISÓDIO III
O escriba voltou-se para a janela de onde apurava a vida dos seres que os sábios perscrutavam para encontrar a cura para suas debilidades. Debilidades de toda ordem que os faziam, acima de tudo, tristes. Não cabia ao escriba questionar os métodos de verificação dos sábios, mas desconfiava de que algo poderia estar faltando àquele modo de teorizar sobre a vida. Um olhar novo talvez descobrisse algo novo. Mas os olhos daquele escrevedor de histórias também já não guardavam o entusiasmo das primeiras observações, quando tentava, feito foca, olhar por cima dos ombros dos sábios e entender o que pensavam, contribuindo com algo novo. Acostumado que estava a apenas observar e narrar, já não se importava em oferecer suas impressões filosóficas; contentava-se em contrabandear estilos e piedades, humanizando ainda mais o enredo dos viventes. Os sábios apropriavam-se de suas narrativas para engendrar suas reflexões, pois jamais olhavam pela janela por onde se passava a vida para não turvar suas impressões com as lamurias e doenças daqueles humanos, desmedidamente humanos.
Os sábios tinham todos a mesma feição e vestiam-se rigorosamente iguais, destoando uns dos outros apenas pelo ângulo de observação com que cada um entabulava sua análise e diagnóstico das situações. Mas às vezes até nisso se confundiam. Apenas um deles era facilmente diferenciável, porque dormia, dormia, dormia... e acordava a deitar regras sobre o que ouvira falar só de raspão. E o escriba, após tantos milênios de observação, tentava compor em si uma humanidade que também não entendia; guardava pedaços de sentimentos e de histórias que nunca se completavam ou faziam exato sentido. E naquele momento em que lutou pela inclusão daquela mulher cigana nas observações dos sábios, ele estava começando a experimentar uma das mais tormentosas experiências humanas – a paixão. Mas não sabia o que era exatamente isso e nem como se instalava; se era doença, se era loucura ou um surto que com o tempo se apagava. Não acreditava em boa parte do que os sábios diziam, mas sobre a paixão eles pareciam ter alguma razão. Ele mesmo já testemunhara casos gravíssimos que curaram-se por si mesmos e nem seqüelas deixaram, como se não tivessem existido. Costumavam dizer que seres humanos são biologicamente programados para se sentirem apaixonados durante
Resmungava sobre isso enquanto se preparava para mais uma etapa de sua tarefa, quando o sábio que dormia acordou e pos-se a explicar:
— A ilusão romântica é responsável por essa história tola de paixão, que a química tão rapidamente explica: dopamina, feniletilamina e ocitocina! E até os zeladores de zoológicos sabem que a forma mais rápida e segura de fazer um casal procriar é colocar os dois juntos no mesmo ambiente por uma certa parcela de tempo. Um modo eficiente e desprovido dos riscos e seqüelas dessa doença enigmática que acomete esses humanos. Mas, como humanos não vivem sem demasias e sofrimentos... — disse ele enfurnando-se entre as vestes pesadas para continuara sua “reflexão introspectiva”, como costumava defender seu sono.
O escriba se deu por satisfeito, embora ainda discordasse da questão do tempo de duração dos efeitos da paixão. Mas o que lhe importava isso, se era apenas o escriba. Voltou novamente os olhos para a janela do universo de suas observações. E estava lá a cigana.
— Vamos, vamos criatura! O que espera? — exigiram os sábios que adentraram o recinto atrasados e esbaforidos como sempre. E o escriba pacientemente voltou a olhar, compilar e contar para eles aqueles lapsos de vidas.
Aquele homem e a cigana conversavam como se trocassem segredos ou informações. Falavam de todas as coisas e pareciam felizes assim.
— Hummm – resmungou o sábio que dormia, vaticinado que aquele era o início de um surto de paixão — Quem deles será o mais débil? Não acredito que desta vez a mulher será acometida em primeiro lugar, pois que é uma cigana!
— Ora, senhor sábio, aquela cigana não me parece diferente de qualquer outra mulher... penso até que...
— Como “pensa”? O pensamento, aqui, não é uma questão de livre recreação; aquela coisa atormentada que os humanos deixam ficar permanentemente a deslizar no meio do que não existe – ora o passado, ora o futuro, de lá para cá, como um louco que perdeu o rumo – ressoou o sábio pondo fim a seu começo de divagação.
Mas o escriba que colecionava fragmentos de histórias alheias já estava pensando naquela cigana e seria capaz de apostar com todos os seis sábios que era ela quem iria se apaixonar. Mas desta vez não sentiu a habitual pena que o fazia quase humano, mas uma estranha sensação que lhe instigava a querer mudar a cena e evitar que aquela mulher se perdesse de amor por aquele homem. Quantas destas cenas ele já vira. Não... não queria que acontecesse com ela.
— Senhores sábios, por favor me dêem um minuto de atenção. Não podemos sacrificar uns para prover de vantagem outros.
— Do que falas, criatura?!
— Refiro-me aos aspectos da apuração de pesquisa que vossas senhorias estão elaborando. Temos que fazer cair uma folha, abanar um vento... qualquer coisa que altere o enredo que se avizinha.
— E podemos saber por que deveríamos nos imiscuir nos enredos humanos, valoroso escriba? — perguntou um dos sábios com ares de ironia e irritação.
Ele não tinha uma resposta que estivesse à altura do que pretendia evitar, porque nem mesmo sabia o que lhe fazia querer afastar a cigana daquela cena.
EPISÓDIO IV
Neste momento o sábio que dormia acordou:
— Há coisas na vida que não escolhemos, mas apenas são, meu caro escriba. E já que são, por que não olhar nos olhos do inevitável e tentar ver? O que temes é que sofra a tal mulher por um amor não correspondido. Mas amor dessa natureza é inteiro, não se divide, não se dá... até porque não tem pra quem. — disse ele, no que foi contestado em uníssono pelo demais:
— Poupe-nos das obviedades!
— Amar sem ser amado pode ser uma das coisas mais tristes da vida. Pode... não quer dizer que deva sempre ser — prosseguiu o sábio que dormia — Quantos amores correspondidos passaram a vida doendo, amando, mas doendo... uma vida longa, mas doendo. Olhar nos olhos do amor sozinho é um ato de sobrevivência a que poucos se arriscam. Mas que surpresa estarrecedora. O amor sozinho é pleno, farto, transbordante. Mergulhar nesse amor é um ato da mais pura coragem. Coisas que talvez somente os loucos alcancem. Amor é coisa de loucos; amor sozinho é mais que isso. É pular o limite do já dado e mergulhar em rio profundo de águas translúcidas que vão dar em todo lugar. É espargir gotas de prata por sobre o possível, o circunstante, o que passar e o que ficar por perto. Andar por aí pleno de um amor inteiro, indiviso, é ato de rebeldia e coragem que a poucos é dado conhecer, meu nobre escriba! Aquele que anda por aí assim tão pleno, ultrapassando o sozinho do amor, ama tanto que atrai para si todo o amor do mundo; encantam, conquistam, se deixam amar e são amados. Os que amam de amor sozinho talvez não saibam como são doces seus abraços, irresistíveis seus beijos, profundos seus olhos, encantadoras suas presenças... mas apenas se não forem tristes por amar sozinhos. Amar é um ato supremo de doação... nem precisa ter troco. Só conhecemos o amor que amamos; não nos é dado sentir o amor que outros nos dão – empolgara-se o sábio que não apenas acordara, mas já se pusera de pé, com as mão levantadas em júbilo e enaltecimento de suas próprias construções retóricas.
Todos se espantaram com tamanha erudição e puseram-se a vasculhar seus pensamentos para acrescentar algo que lhes pudesse incluir na cena. Não poderia o sábio que a quase tudo sonolentamente ignora ter da vida uma idéia mais completa do que os outros que se dedicavam a esmiuçar dela cada segundo. E cada um foi acrescentando suas aspas ao texto alheio.
— A necessidade de dividir o amor e depositá-lo em outro é uma aflição de espírito, uma necessidade de esvaziamento, um desconforto, uma loucura, caro escriba – disse um dos outros sábios. O escriba, nestas circunstâncias de disputas soberanas, tornava-se discípulo, platéia, ouvidor, um quase igual; ganhava uma importância que com o tempo fora descobrindo que não tinha importância alguma.
— O amor sozinho tem como trunfo apenas a desvantagem de não depositar sua infinitude em corações outros. Se for mesmo inevitável, que pelo menos não doam os amores sozinhos. Que se bastem, que transbordem, que sorriam, que sejam felizes por serem preenchidos de tamanha graça e beleza! Os que são amados pelos que amam sozinhos são seres privilegiados. Seja como for, estarão protegidos por uma aura branda; terão seus sonos velados; estarão em preces fecundas que brotam de um vaso cheio. O pensamento amoroso tem força vital. Felizes os que são amados por amores sozinhos. Terão sobre si as asas brancas de uma felicidade que talvez jamais conheçam. Por que temer então pela sorte da tal cigana? – complementou o sábio que parecia buscar recursos outros no lugar para onde ia enquanto dormia. Tinha uma espécie de piedade a pontuar seus arroubos de sabedoria.
Todos os outros cinco sábios silenciaram diante da conclusão. Mas o pobre escriba sentia-se cada vez mais desamparado. Teriam mesmo sabedoria as palavras do sábio que dorme? Perdia-se já em seus pensamentos quando um dos sábios esbravejou, fazendo com que todos voltassem aos seus postos.
— Mas que relevância tem esse assunto para nossos propósitos? Voltemos às observações!
Pois então, senhores sábios, eles apenas conheceram-se brevemente, mas ela faz questão de lembrar que foi ela quem o encontrou, comos e estivesse mesmo a procurar. Não entendo por que diz isso. Ele apenas ri e acha tudo aquilo engraçado. Não acredita em ciganas, mas acredita
Nesta hora, o escriba baixou os olhos e a cabeça pendeu em uma espécie de tristeza e dor. Estava já inoculado pela impressão de paixão que recolhera ao longo de suas longas histórias.
— Preocupa-nos, caro escriba, que tenha deixado de lado o personagem foco de nossas observações para atentar para a tal cigana... — disse um dos sábios, em um tom de voz incomumente moderado, como se entendesse e se apiedasse do pobre escriba, ao que retrucou o outro que dormia:
— Para que buscarmos tantos elementos para entender os homens se já dedicamos a eles uma parte monumental de nossa atenção? Estamos atravessados pela hegemonia do universo masculino. E essa hegemonia é que os fez assim! Cães sem dono que não conseguem ser felizes. Quiseram lhes dar a hegemonia no mundo, ou apenas certificá-los de que esta lhes pertencia por direito e herança divina. O que sabem os deuses que habitam as fantasias humanas sobre os destinos que o mundo real lhes reserva?! – esbravejou de uma forma que não lhe era muito peculiar.
— Sofrem hoje seus meninos, as dores de ver seu reinado destruído. E culpam disso as mulheres. Que sabemos nós das demasias dos tempos, das águas que correm pelos rios, das dores que nos desafiam a ser nós mesmos? Mas o fato é que os lugares se deslocaram, e a ruína dos sentidos arraigados começou a se apresentar. E então os homens hoje se interpelam: o que sou eu diante de ti, que sempre fui por ti o que de melhor tivestes? O que sou eu diante de mim que diante de mim nunca precisei perguntar? Que lugares são esses tão ermos e tão estranhos onde estamos agora diante um do outro e onde efetivamente somos? Quem é você e quem sou eu diante da vida que seguiu seu curso e nos trouxe até aqui? Não somos mais o que éramos e não sabemos mais o que ser. Por que ainda não sabemos como ser diante do novo que ainda não nos ensinou a viver. Estrada nova, diante de memória longa onde tudo era dado e conhecido, sem mistérios, sem temor, por mais que sofrido. Agora, é uma espécie de nada onde tudo se iguala. Mas o que fazer da memória retida, onde eu era maior que tu? O que fazer do todo aprendido, onde esperavas por mim? E eu agora que já não sei como chegar a ti? Que destino cruel o que nos ensina a viver! Que destino cruel o que nos desatina para deixar viver. E o que fazemos nós, os que tivemos a facilidade de errar, errar sem ter que aprender? A vida é rude no seu sentido perene. Não apenas para os que estão acostumados à sua regalia, mas também para aqueles que viveram de suas migalhas. O lugar do conforto é apenas o lugar conhecido, não quer dizer que seja bom. Mas tudo muda na vida. Sobrevivem os que sabem amar.
— Honorável sábio, se me permite a indagação, do que falas? — perguntou ironicamente um dos sábios.
— De eterna supremacia dos homens sobre as mulheres, senhor, e do desconforto que sentem diante de mulheres que são donas da própria história, acostumados que estão com seus pseudopoderes – resumiu o escriba, fazendo uma defesa frágil daquela mulher que ele era obrigado a observar e que lhe perturbava os sentidos.
— Mas vamos adiante, já que não podemos interferir — retrucou o escriba enchendo-se de inexistente coragem para continuar a olhar .
— Sim, você pode colapsar outras possibilidades, novas realidades — explicava ela na tentativa de convencê-lo da verdade que, no fundo, ela tanto temia. Sim, você pode decidir o que será. O que será? A intimidade com as perguntas não a protegia do medo das respostas. E ele, semblante suave, parecia saber e guardar o segredo, com um sorriso que indicava que a resposta estava bem ali e era de uma simplicidade tola. Mas ela não conseguia ver; precisava das bruxarias de um xamã para antes poder descrer de suas próprias ilusões. Era uma cigana, mas era também uma mulher. Era esforço inútil tentar transformar-se no que quer que fosse para ser recebida e amada.
— Ao universo não importa como você pensa que a felicidade é; ao universo basta apenas saber que você quer ser feliz! – esbravejou um dos sábios, sendo interrompido por aquele que dormia – Contenha-se, contenha-se! Deixe o escriba prosseguir.
Ela então começou a se mesclar à serenidade dele, aconchegando-se a uma intimidade que se foi desenhando no ar. O pensamento serenou, já não era preciso se inventar. O botões que fechavam as cercas foram cedendo às mãos suaves e firmes que ele estendeu para conduzi-la. As mãos que ela tanto pedira e que eles não pretendia ofertar. O calor da proximidade dos corpos formou uma fina aura de atração e desejo. Era impossível não se entregar. Como a anfitriã de um castelo, ela se curvou ligeiramente e fez as honras da casa, saudando a nobreza do visitante. Ele caminhou seguro e ela o seguiu sorrindo, mesclando o seu ser ao ser que ele era, corpos ardentes e espíritos apacentados. A pele perfumada de sedução adornou a cena com as cores vivas dos afagos, dos beijos e carícias em movimentos intensos, como os de um artista ávido para compor a tela. Ela estava cansada de portar a si mesma e se deixou reinventar.
— Ah, meu prestimoso escriba, neste momento, o universo responde ao desejo de felicidade, plenitude e paz com um fugaz momento de comunhão — acrescentou o sábio que dormia, deixando-se envolver pela narrativa de um pobre escriba que não tinha voto, nem voz e nem vez, mas a quem restara o direito à liberdade de estilo. E concluiu:
— E disso, meu caro, até os zeladores de zoológico sabem!!!
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