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26 abril 2009

Episódio II

Senhoras e senhores, prezado público de dois ou três leitores, pontualmente apresento o Episódio II da história que comecei a postar no último domingo e que ainda não tem título. Espero que gostem.
EPISÓDIO II
- Sim, esta é a pergunta! Quanto de sacrifício estará ele disposto a empenhar para ser o que o destino lhe reserva? O problema recai sempre sobre a mesma ordem de banalidade! Ora, meu Deus, como é difícil fazer com que algo tão simples possa se tornar compreensível, uma simples realidade? – esbravejava o impaciente sábio espanando tudo o que o cercava com suas pesadas vestes.
O conselho olhava aquele plano lá embaixo onde apenas um personagem reescreveria a história de muitos outros a partir de sua própria história. Era o que se esperava dele. Eram seis integrantes daquela confraria esquisita que por aqui se poderia pensar como um conselho de sábios, de físicos quânticos, de loucos, ou de maçons, talvez. E havia entre eles um escriba sem direito a voto ou opinião. Seu trabalho era apenas escrever e anotar o que os, digamos, sábios descreviam. Ele não sabia nada além do que lhe mandavam escrever, ou seja, tudo o que todos os outros individualmente diziam, em todas as línguas que resolviam falar. Mas não tinha nem poder de voto, veto ou opinião. Ele apenas escrevia e se metia onde jamais era chamado.
- Olhem, olhem lá! – e recomeçavam as observações atentas da vida comum daquele homem para quem voltavam suas expectativas de tornar a humanidade, através dele, mais, digamos, bem... quer dizer... não sei. E o escriba retomava os apontamentos onde sempre acabava por interceder ora por um, ora por outro dos personagens daquela trama emaranhada de um universo banal. E o texto final do escriba nunca estava a contento dos planos superiores – ora piegas, ora piedoso, ora sensacionalista, ora humano, demasiadamente humano, diziam. Mas ao escriba só cabia narrar o que via e apontar o que apontavam os sábios. Mas eles não se importavam com o estilo dele, pois afinal não era sequer um sábio! Era apenas um escriba. Que lhe sobrasse então o estilo.
- Adiante! Vejamos o que faz de si o tal humano. Humanos... demasiadamente humanos!
Naquele momento aquele homem estava diante de si mesmo, interpelado pela própria história de vida. Era difícil ver aquele menino, que habitava aquele homem, em seu esforço de liberdade. Os meninos não parecem saber exatamente o que é ser livre, por mais que tenham sido adestrados a andar soltos pelas ruas e pela vida. Andar solto, como um cão sem dono, é o destino histórico de todos os meninos - e como parecem livres e felizes os cães sem donos. Talvez para ele não fosse assim, sensível que era. Talvez precisasse um tempo mais longo no colo materno; um tempo a mais, antes que fosse porta a fora cumprir seu papel. Agora estava novamente ali, tendo que ser livre de novo. O útero da mãe gigante já não comportava todos os filhos e, insensível, esperava impaciente que muitos fossem embora pela concordância da demissão voluntária. Aos poucos, assim como na vida, os filhos mais novos empurram os mais velhos para lá.
Uma vez mais, diante da porta da rua. O coração tremia de expectativa – ficara tempo demais no colo desta vez. O medo era apenas um hábito de tantas memórias que foram sendo adquiridas por empréstimo às vidas e experiências que não eram exatamente as suas. O coração tremia de vontade de liberdade, a mesma liberdade que não conseguira entender da primeira vez. A liberdade que não viera junto com a separação, da segunda vez. A mente atarantada não se deixava denunciar pelo semblante calmo, tranqüilo e sóbrio. Era já um homem quando ensaiou deixar de ser menino.
- Não há na vida o que seja passível de compreensão sem as medidas de comparação! – esbravejou outro dos seis sábios, como se ouvir fosse somente possível ao esbravejar. Liberdade é igual a quê? Como é ser livre? Perguntava ele enquanto os demais franziam o cenho na tentativa de dialogar com tão complexa reflexão.
- Ser livre não é o mesmo que ser sozinho – disse um deles, parecendo ter dúvidas sobre o que acabara de afirmar – Vamos observar!
Aquele homem também tinha dúvidas sobre as mesmas questões – liberdade e solidão. Talvez os humanos, mesmo demasiadamente humanos, não sejam de todo desprovidos de capacidade de refletir sobre coisas abstratas. E ele começou pelas comparações, como quem vai tateando as partes para entender o todo. Abriu as portas dos armários, da alma e da vida e saiu tirando tudo o que estivera sempre lá – roupas, carinhos, desejos, medos, lembranças, ilusões, ressentimentos, saudades. O chão do quarto foi recebendo o que já não lhe cabia. Comprar roupas novas! Vestir com o novo o que o tempo fez do corpo atlético que perdera as formas, abrindo vagas para o hábito que acompanha a solidão.
- O hábito é o vício travestido de consolo! Deixara-se ficar no colo do hábito consolador depois de cada uma de suas perdas, este é o dilema. E nem foram assim tantas. Anote aí! – ordenou um dos sábios.
E foi assim que aquele homem começou a perder a feição atlética, sentado em uma mesa de bar, ouvindo as canções lamentosas e tristes que uma jovem cantora oferecia a todos os fregueses. Ele esteve lá todas as noites, até colocar no lugar de tudo o que não mais havia a ilusão da paixão pela cantora – ela que cumprimentava sorridente a todos os homens que como ele preenchiam a vida com cerveja e ilusão – “ela sorria pra mim”, disse um dia, como quem quer a confirmação mágica de uma possível paixão, onde estaria no papel principal. As músicas todas falavam de dor, amores tardios, fracassados, sofridos, despejados. Isso parecia, naquela hora, a cara mais rude da liberdade – sabor de cerveja; afagos inconstantes; amores que se dissolviam com a luz do dia. Quanto tempo se deixou ficar assim não é algo que se possa medir. O tempo que nos move os sentimentos não cabe nas medidas precisas da vida. Um dia, depois do outro; cada dia, um outro dia.
- Você está interferindo na observação! Pela milionésima vez em tantos séculos lhe pedimos: atenha-se aos fatos! Contenha seus arroubos piedosos e sua verve poética. Ele é apenas um de muitos e muitos exatamente iguais seres humanos! – esbravejou um dos seis.
- Pesquisas dessa natureza acabam por contaminar o observador. O que acham se determinarmos um lapso de tempo em que faremos o acompanhamento, em partes, da vida de vários personagens? Sugeriu um dos seis.
- Não! – implorou o escriba. É dessa forma que se tornaram loucos, esquizofrênicos ou perdidos aqueles que já nem eram assim tão humanos. O que seria de mim, pobre escrevedor da vida alheia, que nem sábio sou?
- Então, contenha-se e atenha-se a seu ofício! Adiante!
Ele seguiu tateando como um cego que de repente encontra a saída – sexo! Sim, o sexo! O que querem os meninos à porta de tornarem-se livres e felizes cães sem dono? Sexo. E definiu aí o que seria a essência da liberdade – amor sem limites! No entanto, teve o cuidado de acrescentar: com segurança e responsabilidade. E foi assim que começou a colecionar partes do que tentava compor como felicidade, gerando a pior das suas contradições – onde estaria a felicidade em relação à liberdade? Não queria pensar; talvez nem pudesse.
Uma coleção de rostos, corpos, currículos, cabelos, roupas, estilos, idades, gostos, desejos, loucuras, solidões. Uma coleção de mulheres que em suas partes não conjugavam-se em um todo. Todas espalhadas pela sua vida, como as roupas pelo chão. O sexo sob encomenda, como quem escolhe do conteúdo à embalagem. Todas selecionadas segura e responsavelmente. Como lhe era difícil ganhar as ruas como um cão sem dono. E o armário onde tudo deveria se guardar estava limpo, assim como o das roupas, mas vazio. Perdera de vista o seu talento natural para amar por inteiro, sem expectativas, por puro gozo, rompendo a ilusão banal da falta de limites ou de demasias, para apenas amar como quem transborda e se alegra com o que pode oferecer, mesmo que pouco. Não havia tempo na ciranda das mulheres infindas para se deleitar com a arte e o talento que lhes foram naturalmente oferecidos.
- Vejam isso! Vejam isso! A ele foi dado o dom e o talento para a conjunção carnal. E ele sabe disso! Mas como consegue desperdiçar a herança divina para ser assim... tão... demasiadamente humano!? O sexo é a fonte da criatividade, o poder supremo da transformação; não é um lago raso onde se molha os pés sujos de lama e se sai correndo para esconder que se esteve lá! Ora, deuses de toda a mitologia! O que fizestes vós com esta humanidade tosca?
- Espere senhor sábio, espere. Dê-lhe mais uma chance. Vamos ver o que se passa – intercedeu o escriba.
Acostumado, por dever de ofício, a enxergar a vida pelo seu aspecto lógico, vasculhou-se criteriosamente para encontrar uma referência que lhe servisse de guia. Estava no mapa o que Carl Jung mesmo dizia - aquilo que reprimimos não deixa de existir, apenas explode em outro lugar, dramaticamente. O lugar das contradições: fazer amor sem limites, mas com segurança. O conflito entre o desejo e a responsabilidade. “Mas eu sou o que sou!” – repetia para si mesmo, exaltando os defeitos que considerava não mais do que qualidades exacerbadas. Construíra-se nas duras críticas. E agora, como evadir-se?
- Foi aí que apareceu aquela cigana.
- Que cigana?!?! - perguntaram os sábios em uníssono.
- Uma mulher que vestia uma saia florida e falava de coisas que acontecem do lado de cá. Ela não parecia saber muita coisa, mas que tinha uma certa idéia, a lá isso tinha – respondeu o escriba satisfeito por ter algo a oferecer que não fosse assim tão... demasiadamente humano.
- Observemos, então – aquietaram-se os sábios para prestar atenção nos fatos que o escriba minuciosamente narrava.
Ele estava tentando manter-se em forma e prometera-se, pela milésima vez, que se empenharia em caminhadas saudáveis para compensar os excessos. E era sempre tão compensador o esforço das caminhadas à luz do dia depois das noites tortas. E de repente aquela mulher apareceu, correndo pela calçada onde ele estava sentado, em um banquinho de plástico branco, em frente a uma Kombi, tomando a água de coco que o misto de vendedor e psicanalista lhe oferecia todas vez que ele aparecia por lá. Não era exclusividade dele, é bem verdade, mas ela gostava de pensar-se merecedor de uma certa exclusividade. Mas a verdade é que a saia florida daquela mulher foi que lhe chamou a atenção.
- Ei! Quer que eu leia a sua mão? – disse ela, logo parecendo mudar de idéia e completando com outra solução – Me dê a mão e vamos por aí para ver o Sol! Mas se quiser, também posso ler sua mão - insistiu no que era verdadeiramente sua vontade. Como as mulheres tã facilmente abrem mão de suas vontades...
— Guarde seus palpites - disse um dos sábios apenas para não perder sua fala pontual, pois já estava começando a interessar-se pelo assunto - Adiante, adiante.
Ela trazia uma espécie de embornal onde guardava ouro e latão em meio a um monte de penduricalhos que ressoavam quando ela tentava achar algo que pudesse oferecer a ele. E falava, falava, falava. Saíram andando pela calçada e pelas ruas como se não estivessem exatamente ali. E ela insistiu que ele lhe desse a mão.
Não, ele não queria se expor a tal ponto. Oferecera-lhe um mapa astral completamente pronto, contara-lhe segredos indizíveis. Tudo, menos o que guardava sua mão.
- Veja se não é o que digo! Nem ao menos se deu a chance de saber se é possível construir uma história para além das linhas da própria mão! – disse um dos sábios, ao que o escriba retrucou: Calma, sábio senhor! A precipitação não é instrumento de pesquisa validada pela congregação. E seguiu sua narrativa:
Ele não abrira a mão, embora oferecesse tudo o que estava em torno de si. Dava-se sem efetivamente se dar. Seria o medo? Seria a noção ingênua da liberdade? Não sabia a resposta, mas deixava-se infiltrar lentamente por outras possibilidades, coisas ainda não totalmente conhecidas, mas coisas discretamente sonhadas. Estaria aí a essência da liberdade?
Aquela mulher parecia ter a língua molhada em pó de ouro. Ela não viu sua mão, mas deixou que ele visse um mundo de quinquilharias que trazia no embornal. Quem era ela e o que fazia ali na história da vida dele?
- Atenha-se aos fatos! – interferiu um dos sábios que perdia sempre o fio da história por seu hábito incontrolável de cochilar – não nos interessa a vida da cigana ou seja lá o que esta mulher for. Atenha-se aos fatos! - completou ele com o que ainda conseguira reter do pouco que ouvira dizer.
- Mas senhor, as mulheres desempenham papel fundamental na vida dos humanos, mesmo daqueles ...demasiadamente humanos. Por que não conhecê-la um pouco mais? Quem sabe... – não conseguiu terminar a frase, interrompido que fora pela fúria em bloco dos seis sábios.
- Atenha-se aos fatos!!!!!!

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